sexta-feira, 30 de novembro de 2012

A Caricatura de Enver Hoxha Feita por Luiz Sérgio N. Henriques


A Caricatura de Enver Hoxha Feita por Luiz Sérgio N. Henriques

Por Ícaro Leal Alves

 
 

Foi-me solicitado que apresentasse meus comentários acerca da resenha do livro O Imperialismo e a Revolução do líder revolucionário albanês, Enver Hoxha, feita por Luiz Sérgio N. Henriques e publicada pela primeira vez no semanário do Partido Comunista Brasileiro, Voz da Unidade, 16 a 22 de janeiro de 1981, ano II, n. 41, p. 17 e hoje disponibilizada pelo blog Materialismo.net.

            Preparei alguns comentários sobre pontos centrais de discussão que consegui abstrair do texto – é preciso dizer – pouco substancial do Dr. Henriques. É lamentável que um homem da estatura intelectual do organizador do site Gramsci e o Brasil tenha conseguido pouco mais do que colecionar adjetivações sobre a “caricatura” de homem que era Hoxha.

            Meus comentários seguem abaixo:

“Stalinismo Maciço e Obstuso” e a Colonização do Pensamento Comunista

Talvez na tentativa de dar cientificidade ao seu trabalha de propaganda anticomunista o Dr. Henriques começa seu texto por caracterizar a conjuntura sobre a qual escreve:

Entre as peculiaridades do atual momento político, está a de impor, por um lado, a busca da unidade entre todos os que se opõem à autocracia militar vigente, busca que se pode chamar de vital para a redemocratização (HENRIQUES, 1981).

Imediatamente alerta ao leitor que essa unidade requerida para luta contra o autocracia militar que então engolia a sociedade brasileira é corroída e ameaçada:

Mas, por outro lado, aquele momento político já avançou ao ponto de [sic] fazer surgirem irreparáveis divergências entre as oposições, em geral, e as esquerdas, em particular (HENRIQUES, 1981).

No paragrafo seguinte somos informados que essa ameaça à unidade “democrática” não vem da paranoia e do preconceito anticomunista característica dos anos de chumbo pelos quais a sociedade brasileira, obviamente, não passou ilesa, não passou sem adquirir qualquer coisa que lhe entranhe na alma, mas sim um livro de 400 páginas de um líder político-revolucionário albanês, que, se contarmos não com o restrito grupo de intelectuais leitores da literatura política saída do Leste Europeu e países afins, mas sim, a totalidade dos brasileiros, é justo dizer; quase ninguém leu.

            Ao falar do livro, o Dr. Henriques faz menção ao prefácio de João Amazonas, então dirigente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Ora, logo no primeiro paragrafo do mencionado prefácio, João Amazonas afirma; “Fazia grande falta ao movimento comunista mundial uma obra da Envergadura de O IMPERIALISMO E A REVOLUÇÃO” (AMAZONAS, 1980: I)[1].Ficamos assim informados que a obra de Hoxha tem um público alvo bem restrito e um objetivo muito claro, o de ser uma síntese do atual estágio de desenvolvimento do marxismo-leninismo (atual para 1978), e, seu publico alvo é, não mais, que o restrito grupo de marxista-leninistas de leitura albanesa que o autor da resenha tem direcionado sua crítica.

            Estranho! O doutor Luiz Sérgio Henriques entende como ameaça a frente democrática do Brasil a edição de um livro que não tem outro objetivo que informar aqueles que reivindicam uma determinada orientação política sobre as leituras feitas pelo seu principal representante da realidade atual do movimento popular e de sua síntese teórica?

O Dr. Henriques fala de “Stalinismo maciço e obtuso”, de “codificação staliniana do pensamento de Marx e de Lenin” e de “simplificação abusiva da riqueza e a diversidade da obra de Marx, Engels e Lenin”, mas é o próprio Lênin, quem afirma, em Que Fazer?,que o motivo da ruptura da aliança dos comunistas russos, nos fins do século XIX, com os chamados marxistas legais, fora a ausência de independência ideológica imposta aos primeiros pelos últimos e que é essa independência condição Sine Qua Non para qualquer aliança[2]. Como se explica então essa total supressão de independência ideológica exigida aos comunistas do Brasil pelo gramsciano L. S. N. Henriques? Poder-se-ia pensar em maior supressão da liberdade de opinião? É possível imaginar uma concepção de democracia que seja mais totalitária que essa, para a qual, uma frente democrática tem por pressuposto que um dos seus componentes abandone totalmente sua liberdade de produzir opinião independente do outro?

            É a esse tipo de exigência grotesca, que o filosofo italiano, Domenico Losurdo, se refere, ao falar de colonização do pensamento comunista. A democracia (burguesa) é completamente democrática conquanto os comunistas estejam interditados de revelar publicamente suas reais opiniões. Só tendo em vista isso é possível entender plenamente a que se refere o autor quando falar de “impor” a unidade a frente democrática no Brasil.

O “todo compacto, em si acabado, capaz de responder a todos os problemas” dos stalinistas e a Grande Ausência dos marxianos

Ao lermos a critica do professor Lúcio Jr[3] a essa resenha que agora submetemos a analise ficamos sabendo que o Dr. L. S. N. Henriques posiciona-se atualmente no campo dos marxianos. Os marxistas com forte presença acadêmica do período atual se caracterizam pela preferencia ao termo marxiano, no qual vêem maior riqueza cientifica que no termo marxista-leninista.

            Já na resenha de 1981 podemos notar como Henriques rebela-se contra essa designação que considera absurda;

Desde o início, fica claro que Hodja, ao usar de modo repetitivo a fórmula marxismo-leninismo, de cuja “pureza” (sic) se arvora em defensor, o que faz na verdade é apresentar uma versão de quinta categoria da codificação staliniana do pensamento de Marx e de Lenin. Tenho a impressão de que poucas vezes se fez tão claro, como neste texto de Hodja, que o uso daquela fórmula termina por “apresentar a teoria revolucionária do movimento comunista como um todo compacto, em si acabado, capaz de responder a todos os problemas”, ao mesmo tempo [em] que simplifica abusivamente a riqueza e a diversidade da obra de Marx, Engels e Lenin, além da própria história do movimento operário (HENRIQUES, 1981).

Vemos aqui plenamente sintetizada, já há 30 anos, essa tese, que muitos insistem em ver como novidade, segundo a qual o marxismo-leninismo é uma codificação staliniana do pensamento de Marx e de Lênin, que consiste fundamentalmente em apresentar a teoria revolucionária do movimento comunista como um todo compacto, em si acabado, capaz de responder a todos os problemas. Ou seja, aqui estamos diante da acusação de que o marxismo-leninismo seria a-histórico.

            É verdade que foi Stálin o maior divulgador do termo marxismo-leninismo e talvez tenha sido o primeiro a reivindica-lo. Mas, como Stálin compreendia e definia essa teoria?

            Em seu livro Fundamentos do Leninismo, Josef Stálin dedica as primeiras páginas a discussão do “que é, pois, o leninismo?”. São duas paginetas que trazem, no entanto, aquele historiador que gosta de pensar e que não está infectado pelos preconceitos correntes elementos de reflexão de tomos inteiros. Após criticar as definições correntes do leninismo Stálin afirma; “o leninismo é o marxismo da época do imperialismo e da revolução proletária”[4].

            O leitor afiado e que ainda não ficou cego pelo anticomunismo notará que Stálin se refere a época, portanto, a temporalidade. Algo sem par para um historiador. A definição de Stálin do leninismo vai mais a além. Ele diz;

A verdade inteira sobre o leninismo consiste em que não só ressuscitou o marxismo, mas deu um passo à frente, prosseguido o desenvolvimento do marxismo dentro das novas condições do capitalismo e da luta de classes do proletariado (STALIN, sem data: 8).

Pois bem, o marxismo-leninismo, ou, a decodificação staliniana do pensamento de Marx e Lênin – que deforma esse pensamento ao torna-lo um todo compacto, em si acabado, capaz de responder a todos os problemas – exige não só uma temporalidade especifica, mas também um campo concreto de ação, as condições do capitalismo (aqui Stálin refere-se ao capitalismo monopolista), mas também a experiência coletiva, a luta de classes. Em resumo, a história.

            A acusação de um caráter a-histórico do marxismo-leninismo cai por terrar.

            Por outro lado, os seus detratores, que se pretendem atentos as particularidades e inovações, parecem não passar imunes da acusação de a-históricos, quando desenvolvem por exemplo a teoria do Retorno a Marx. Vejamos com um já citado filosofo italiano desenvolve brilhantemente esse problema:

Eis que emerge a palavra de ordem de “volta a Marx”. Seria fácil demonstrar que Marx é o filosofo mais decisivamente crítico da filosofia dos retornos. Em sua época, desprezou aqueles que, em polêmica com Hegel, queriam voltar a Kant ou, definitivamente, a Aristóteles! Volta a entrar, no abc do materialismo histórico, a tese segundo a qual a teoria se desenvolve a partir da história, da materialidade dos processos históricos. O grande pensador revolucionário não hesitou em reconhecer o débito teórico contraído por ele em relação a breve experiência da Comuna de Paris: atualmente, ao contrário, décadas e décadas de um período histórico particularmente intenso, da Revolução de Outubro à chinesa, cubana (nós incluímos, albanesa – I.L.A.) etc., devem ser declaradas destituídas de significado e de relevância no que diz respeito à “autêntica” mensagem da salvação já consignada, de uma vez por todas, em textos sagrados, que teriam apenas de ser redescobertos e reanalisados religiosamente (LOSURDO, 2009: 20)![5]

É a esse tipo de dogmatismo canônico que recorre o nosso “crítico”, que curiosamente atribui ao partidário da leitura “histórica” do marxismo proposta por Stálin a acusação de reverencia religiosa. Nega as experiências históricas do socialismo no século XX e apega-se a letra de Marx. É a isso que se referia o professor Lúcio Jr, em sua critica ao mesmo Dr. Henriques, quando afirmava que esse nega a linha de continuidade entre Marx, Lênin e Stálin.

            Sobre essa categoria de dogmatismo tenho uma experiência particular que gostaria de compartilhar. Faz poucos dias recebi uma resposta ao meu artigo “Alguns Problemas do Paradigma Trotskista”. Na carta um trotskista argumentava que as citações de Lênin referentes ao problema do socialismo em um só país eram nulas visto que ele não conheceu a obra a Ideologia Alemã de Marx e Engels, só publicada em 1932, nas quais os dois afirmam ser impossível a construção de uma sociedade comunista num só país. Tendo Trotsky tido a possibilidade de estudar esses escritos, cujas páginas, muitas, se perderam para sempre, estaria melhor colocado para falar desse problema do que Lênin que morrera em 1924. Assim o trotskista dá a discussão do problema do socialismo em um só país por encerrado. Não entraremos na questão da interpretação que consideramos erronia das palavras de Marx e Engels, somente salientaremos que perante a experiência histórica gigantesca de um país agrário, capitalisticamente atrasado, destruído pela guerra e cercado de Estados hostis, que consegue em poucos anos edificar relações econômicas socialistas, desenvolver as forças produtivas ao ponto de passar da época do arado de madeira a da energia atômica e ainda vencer uma guerra mundial praticamente sozinho, o trotskista dogmático prefere se aferrar a letra messiânica de um texto de Marx carcomido pela critica corrosiva dos ratos e que o próprio autor decidiu não publicar.

            Podemos concluir desse ponto que a história é a Grande Ausência desses críticos do marxismo-leninismo que recentemente passaram a se esconder sobre a máscara do pensamento marxiano, mas que também se intitulam de trotskistas, gramscianos etc.

Acusação de Dogmatismo e Falsa Dicotomia

O Dr. Henriques também acusa Enver Hoxha de criar uma falsa dicotomia; “Todo o seu discurso, efetivamente, está marcado pela oposição ortodoxia/revisionismo”. Diante da inconsistência tremenda que marca o discurso “revisionista” do nosso crítico bastaria afirmar que isso é mentira. Hoxha não advoga uma posição de ortodoxia e cópia acrítica da experiência soviética ou outra como quer fazer crer o autor. O próprio Hoxha afirma em alguns momentos que os soviéticos cometeram erros já no período de Stálin[6] e a experiência albanesa é por si só criativa como faz notar Fishuk na introdução que preparou para o texto de Henriques, o socialismo nasce na Albânia de uma guerra antifascista de libertação nacional num país feudal sem proletariado industrial desenvolvido.

            O problema da difusão tremenda de um revisionismo no movimento comunista internacional é coisa que preocupou toda uma serie de líderes comunistas e não somente Hoxha. A critica ao revisionismo é bem diverso do apego a letra de Marx, característico ai sim de uma serie de críticos do marxismo-leninismo, como já demonstramos. É sim a preocupação com a castração acadêmica feita contra o marxismo pelo ala direita do movimento dos trabalhadores, como faz notar o próprio Lênin, já em 1908[7], e reafirma, 50 anos depois, Mao e Enver.

Discurso de Autoridade e Construção Dialética do Conhecimento

Aqui chegamos a mais um ponto curioso do texto. Segundo ele, Hoxha realiza um processo de castração do carácter criativo do marxismo (!??), e; “Ao cabo desta operação, ficam restaurados, em todo o seu duvidoso esplendor, os argumentos de autoridade no interior do marxismo” (HENRIQUES, 1981). Depois de encontrarmos essa argumentação em um trabalho de 1981 é espantoso recordar como algumas pessoas ainda o utilizam com ares de extrema novidade. Pelo menos, essas pessoas desconhecem a definição de Lênin do Marxismo como passo posterior a tudo aquilo que de melhor a ciência burguesa foi capaz de produzir[8]. Mas o Dr. Henriques, que conhece tal definição e sabe muito bem o processo complicado que move a elaboração do conhecimento estaria livre para criticar de forma tão grosseira o exigência de Hoxha de um referencial sólido nos clássico do marxismo-leninismo? Não faria melhor se admitisse a necessidade de tal referencial e exigisse dos seu colegas gramscianos, trotskistas e outros a devida utilização desse referencial atendo-se as experiências históricas, única forma adequada de utiliza-lo.?

            É essa uma estranha característica do campo antimarxista-leninista, eles falam de “discurso de autoridade” e se saem de discussões históricas espinhosas com citações de textos que os próprios autores decidiram não publicar. Entenda isso quem poder.

A Paranoia Stalinista

Por último reaparece a tese canônica em termos de crítica ao stalinismo, a acusação de paranoia por parte de seus lideres. Segundo o autor,Hoxha excomunga do mundo comunista como inimigos do povo, os trotskistas, bukharinistas e outros istas, pela mais pura paranoia. Mas uma vez o exemplo de como a inovadora corrente marxiana, cuja ultima palavra é retornar a Marx, não consegue observar uma coisa chamada história.

            Mas como os marxianos só parecem estar dispostos a ir longe no tempo quando o assunto são manuscritos embolorados de Marx deixemo-los o exercício de meditar sobre a atual situação na Síria e de que lado está o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (trotskista)[9]. Assim nossos marxianos podem refletir mais detidamente sobre a paranoia stalinista.

Construção da Democracia e enriquecimento categorial; alguns serviços ao capital <<Considerações Finais>>

Ao longo do texto fizemos algumas considerações sobre determinados pontos que notamos centrais da elaboração da critica a Hoxha, que sob a máscara da critica ao dogmatismo não é mais que critica ao marxismo-leninismo. E mais, o caráter extremamente limitado da resenha apresentada pelo Dr. Luiz Sérgio N. Henriques, limitado inclusive no numero de linhas, nos forçou a trabalhar quase que exclusivamente com léxicos. Henriques não fez muito mais que apresentar adjetivações referentes ao líder albanês que entre outras coisas é acusado de ser uma figura “bizarra”. O desprezo dos marxianos pela história e pelo socialismo real, aquilo que realmente se constrói, chega a esse extremo.

As considerações apresentadas agora ficaram para o final não só porque se referem aos ultimos parágrafos do texto analisado mais também porque são o desenlace da trama.

Afirmamos logo de inicio que o que o doutor Henriques propõe é uma concepção totalitária de democracia. Pois vejamos:

Gostaria de observar, por fim, que a construção de uma sociedade democrática, possível ‒ apenas possível ‒ no Brasil de agora, estimula no campo da teoria um processo de enriquecimento categorial: é como se a sociedade civil, articulando-se, passasse a cobrar mais das diferentes correntes políticas (não se trata, é óbvio, de nada parecido com “patrulhamento ideológico” ou coisa assim). E quem se apresenta patrocinando um livro como o de EnverHodja só pode aspirar às dimensões de seita inconsequente e totalitária, sem muito a oferecer para aquela articulação mais sólida da sociedade civil e para o próprio processo de enriquecimento dos conceitos e das categorias (HENRIQUES, 1981).

Pois bem, o doutor Henriques apresenta o processo de democratização do país como sendo algo que estimulasse o enriquecimento categorial no campo da teoria, mas acredita ser condenável aquele grupo que se vê patrocinando um livro! Pouco importa se esse grupo tenha tido muitos saídos de suas fileiras exterminados fisicamente, seja na guerrilha do Araguaia seja na chacina da Lapa, por se baterem por essa “democracia” de que fala Henriques. Tão pouco importante é, tão significativo como um detalhe infantil, para o doutor Henriques, que o autor desse livro seja o homem que liderou um pequeno povo, a altura contando com pouco mais de um milhão e meio de pessoas, para prestar seus concursos a eliminação da maior maquina de guerra contra democracia da história do século XX, a Wehrmacht. Pouco importa se esse homem tenha liderado um exército (o Exército de Libertação Nacional Albanês, ELNA) para com seu suor e sangue ajudar a destruir e extirpa da face da terra o nazi-fascismo. Tudo isso é um mero detalhe, circunstancial talvez, como o é, ver um paladino da democracia, como o doutor Luiz Sérgio Henriques, reivindicando o retorno da censura anticomunista sob as novas vestes do enriquecimento categorial. Afinal, o que é apelar para que se “condene” um grupo político que edita um livro escrito por um líder de um país de terceiro mundo e do campo socialista, que ainda por cima liderou um movimento guerrilheiro contra o nazi-fascismo, porque supostamente esse grupo não tem com o que contribuir para a democracia, se não o velho ódio anticomunista reeditado e publicado nas folhas de um semanário que se afirma comunista?

            O “totalitarismo” burguês tornou-se mais sofisticado. Tagarela sobre a “sociedade civil”, esse termo vago e meloso, enquanto busca negar, obscurecer, submeter a vexação publica aqueles que com suas vidas concorreram para derrubar os muros do fascismo e da opressão e construir uma verdadeira democracia para os trabalhadores. O pensamento do Camarada Enver Hoxha, não obstante seja apreciado com diferentes níveis de validade pelos que de fato defendem uma sociedade mais democrática, continua sendo uma síntese magistral de toda uma época de lutas e de conquistas das classes exploradas e oprimidas. Um pedaço importante do edifício inacabado e interminável, mas já gigantesco, que é hoje, o marxismo-leninismo.



[1] AMAZONAS, João. Prefácio in HOXHA, Enver. O Imperialismo e a Revolução; tradução: Instituto de Estudos Marxista-Leninistas da Albânia – 2ª Edição, 1979: – 2ª Edição – Editora Anita Garibaldi Ltda. São Paulo, 1980. Pp. I
[2] LENIN, Vladimir. Que Fazer? In V.I. LENIN OBRAS ESCOLHIDAS EM TRÊS TOMOS; V. 1. – São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1979. Pp. 92
[3] JR, Lúcio, Sobre Resenha de um Gramsciano Contra Hoxha disponível em <<http://revistacidadesol.blogspot.com.br/2012/11/sobre-resenha-de-um-gramsciano-contra.html>>, consultado em 30 de novembro de 2012.
[4] STÁLIN, Josef. Fundamentos do Leninismo. – Recife: Edições Manoel Lisboa, sem data. Pp. 8
[5] LOSURDO, Domenico. Fuga da História? A revolução russa e a revolução chinesa vistas de hoje. – 1ª reimpressão – Rio de Janeiro: Revan, fevereiro de 2009. Pp. 20
[6] HOXHA, Enver. A Luta Contra o Revisionismo Soviético; Discurso na Conferência dos 81 partidos comunistas e operários, realizada em Moscou, em 1960. – São Paulo: Edição Conjunta: Anita Garibaldi e Associação de Amizade Brasil-Albânia, 1985. ( Nas partes referentes a critica dos soviéticos a Stálin, Hoxha afirma que Stálin cometeu erros mais que no geral manteve-se no campo do marxismo-leninismo).
[7] LÊNIN, Vladimir. Marxismo e Revisionismo in V.I. LENIN OBRAS ESCOLHIDAS EM TRÊS TOMOS; V. 1. – São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1979. Pp. 41
[8] LÊNIN, Vladimir. As Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo in V.I. LENIN OBRAS ESCOLHIDAS EM TRÊS TOMOS; V. 1. – São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1979. Pp. 35-38
[9] ALVES, Cristiano. PSTU manifesta solidariedade a mercenários da CIA na Síria disponível em <http://www.apaginavermelha.blogspot.com.br/2012/11/politica-pstu-manifesta-solidariedade.html>  consultado em 30 de novembro de 2012.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O Partido Comunista - Vanguarda da Classe Operária (Stálin)


O Partido Comunista – Vanguarda da Classe Operária

Por Josef Stálin

 

O Partido tem que ser, antes de tudo, o destacamento de vanguarda da classe operária. O Partido tem que incorporar em suas fileiras a todos os melhores elementos da classe operária, assimilar sua experiência, seu espírito revolucionário, sua abnegação sem limites pela causa do proletariado. Mas para ser um verdadeiro destacamento de vanguarda, o Partido tem que estar aparelhado com uma teoria revolucionária, com o conhecimento das leis do movimento, com o conhecimento das leis da revolução. Sem isto, não terá forças bastantes para dirigir a luta do proletariado, para conduzi-lo atrás de si. O Partido não pode ser o verdadeiro Partido se se limita a registrar o que vive e o que pensa a massa da classe operária, se marcha a reboque do movimento espontâneo desta, se não sabe vencer a inércia e a indiferença política do movimento espontâneo, se não é capaz de elevar-se acima dos interesses momentâneos do proletariado, se não sabe elevar as massas ao nível dos interesses de classe do proletariado. O Partido tem que marchar à frente da classe operária, tem que ver mais longe que a classe operária, tem que conduzir atrás de si o proletariado e não marchar a reboque da espontaneidade. Os partidos da Segunda Internacional, que pregam o "seguidismo", são os portadores da política burguesa, que condena o proletariado ao papel de um instrumento posto em mãos da burguesia. Só um Partido que se coloque no ponto de vista de destacamento de vanguarda da classe operária e seja capaz de elevar-se até o nível dos interesses de classe do proletariado, só um Partido assim é capaz de afastar a classe operária do caminho do "tradeunionismo" e fazer dela uma força política independente. O Partido é o dirigente político da classe operária.

 

Falei mais acima das dificuldades da luta da classe operária, da complexidade das condições da luta, da estratégia e da tática, das reservas e das manobras, da ofensiva e da retirada. Estas condições são tão complexas, se não mais, quanto as condições da guerra. Quem pode se orientar nestas condições, quem pode dar uma orientação acertada às massas de milhões de proletários? Nenhum exército em guerra pode prescindir de um Estado Maior perito, se não quiser se ver condenado à derrota. Acaso não é claro que tão pouco o proletariado, e com maior razão, pode prescindir deste Estado maior, se não quiser ficar a mercê de seus inimigos jurados? Mas, qual é seu Estado Maior? Não pode ser outro senão o Partido revolucionário do proletariado. Sem um Partido revolucionário, a classe operária é como um exército sem Estado Maior. O Partido é o Estado Maior de combate do proletariado.

 

Mas, o Partido não pode ser apenas um destacamento de vanguarda, tem que ser, ao mesmo tempo, um destacamento da classe, uma parte da classe, intimamente ligada a esta com todas as raízes na sua existência. A diferença entre o destacamento de vanguarda e o resto da massa da classe operária, entre os membros do Partido e os sem partido, não pode desaparecer enquanto não desaparecerem as classes, enquanto o proletariado vir suas fileiras serem engrossadas com elementos procedentes de outras classes, enquanto a classe operária em seu conjunto não tiver a possibilidade de elevar-se até o nível do destacamento de vanguarda. Mas o Partido deixaria de ser tal partido se esta diferença se convertesse em uma ruptura, se se encerrasse em si mesmo e se afastasse das massas sem partido. O Partido não pode dirigir a classe se não está ligado às massas sem partido, se não existem laços de união entre o Partido e as massas sem partido, se estas massas não aceitam sua direção, se o Partido não goza de crédito moral e político entre as massas. Há algum tempo ingressaram em nosso Partido duzentos mil novos filiados operários. O que há de notável aqui é o fato de que estes operários, não só vieram por eles mesmos ao Partido, mas que foram mandados a ele por todo o resto da massa sem partido, que tomou parte ativa na admissão dos novos membros e sem cuja aprovação estes não teriam sido admitidos. Este fato demonstra que as grandes massas de operários sem partido vêem em nosso Partido o seu Partido, o Partido mais próximo e mais querido, em cujo engrandecimento e fortalecimento se acham profundamente interessados e a cuja direção confiam de bom grado a sua sorte. Desnecessário demonstrar que sem esses fios imperceptíveis que unem nosso Partido com as massas sem partido, o Partido não poderia converter-se na força decisiva de sua classe. O Partido é uma parte inseparável da classe operária.

 

"Nós — diz Lenin — somos partido de classe e por isso quase toda a classe (e em tempo de guerra, em épocas de guerra civil, a classe em sua totalidade) tem que atuar sob a direção de nosso Partido, deve ter com o nosso Partido o contacto mais estreito possível; mas seria manilovismo[1] e "seguidismo" acreditar que quase toda ou toda a classe pode estar algum dia, sob o capitalismo, em condições de elevar-se ao grau de consciência e de atividade de seu destacamento de vanguarda, de seu Partido socialista. Nenhum socialista em juízo perfeito jamais pôs em dúvida que, sob o capitalismo, nem mesmo a organização sindical (mais primitiva e mais acessível ao grau de consciência das camadas menos desenvolvidas) está em condições de abranger toda ou quase toda a classe operária. Esquecer a diferença que existe entre o destacamento de vanguarda e toda a massa que marcha atrás dele, esquecer o dever constante que tem o destacamento de vanguarda de elevar camadas cada vez mais amplas a seu próprio nível avançado, não significa outra coisa senão enganar-se a si próprio, fechar os olhos à imensidade de nossas tarefas e amesquinhá-las". (Lenin, "Um Passo Adiante, Dois Passos Atrás").

 



[1] "Manilovismo": placidez, inatividade, imaginação ociosa. De Manilov, um dos personagens da novela de Gogol, "Almas Mortas"


Fonte - Arquivo Marxista na Internet

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Alguns Problemas do Paradigma Trotskista


Alguns Problemas do Paradigma Trotskista

Comentário ao artigo de Bernardo Cerdeira

Por Ícaro Leal Alves

 

Alguns comentários que elaborei sobre o artigo do jornalista trotskista Bernardo Cerdeira <<Bolchevismo e Stalinismo: um velho debate>>.

            Nesse trabalho Cerdeira desenvolve a velha leitura trotskista da história soviética que pressupõe a ruptura entre o velho bolchevismo de Lênin, revolucionário e democrático, e o <<stalinismo>> do período de Josef Stálin, que seria por sua vez contrarrevolucionário e totalitário.

            Aqui, aponto alguns problemas dessa linha de raciocínio e proponho alguns elementos de reflexão.

A mitologia do “período de Lênin”

O primeiro problema que identifiquei na tentativa de Cerdeira em desvincular o leninismo do stalinismo, ou na sua expressão, o bolchevismo do stalinismo, é a leitura que faz do período de Lênin, que ele identifica como bolchevismo. Para Cerdeira, Stálin teria introduzido um regime burocrático-totalitário, que identifica como stalinismo em oposição ao regime instituído por Lênin e que supostamente se diferenciaria por uma maior liberdade e uma maior democracia para os trabalhadores. Não sei se essa afirmação pode ser considerada como 100% (cem por cento) condizente com a realidade.

            Vejamos como Cerdeira caracteriza o período de Lênin:

Mesmo nos momentos de guerra civil, com todas as óbvias limitações que essa luta implacável impunha, o regime bolchevique de 1917 a 1923 foi extremamente democrático para a classe operária e os setores populares a ela aliados. Apesar de atacado por todos os lados, pelo exército branco e pelas tropas de 14 nações comandadas pelos maiores países imperialistas; apesar de sabotado internamente pelos partidos oportunistas, como os socialistas-revolucionários e mencheviques; apesar de tudo isso, foi o regime mais democrático para a classe operária e para o povo que a história já conheceu.[1]

Como o autor justifica essa tomada de posição sobre o período de Lênin?

porque era baseado em um organismo que era ao mesmo tempo órgão de mobilização e base do Estado operário: os conselhos de representantes dos operários e camponeses (soviets). Segundo, porque o regime soviético garantiu amplas liberdades para a classe operária e o povo, assegurando o direito das organizações dos trabalhadores, sindicatos, comitês de fábrica, etc.[2]

Há um problema que Cerdeira parece não captar nisso tudo. O fato de tais garantias democráticas do regime soviético só existirem enquanto potencialidades. De fato o regime soviético traz em suas instituições muito mais garantias de realização de uma efetiva democracia para os trabalhadores do que o regime parlamentar, mas, no período da guerra civil e imediatamente após ele tais garantias só existiram enquanto virtualidades, ou, mais justamente, potencialidades. Algo intrínseco as formas de organização soviéticas, mas que estavam objetivamente inibidos pela guerra civil.

            Observemos as coisas através de um exemplo prático. Em um artigo publicado no nº 89 do Pravda, em 9 de Maio de 1918, portanto um pouco antes do inicio da guerra, Lênin afirma:

Também aqui é preciso fitar a verdade de frente: a implacabilidade, indispensável para o êxito do socialismo, continua a ser insuficiente entre nós, e insuficiente não porque falte decisão. Temos decisão suficiente. Não sabemos é apanhar suficientemente depressa uma quantidade suficiente de especuladores, de ladrões e capitalistas, de infractores das medidas soviéticas. Porque este «saber» só se cria com a organização do registo e do controlo. Em segundo lugar, não existe firmeza suficiente nos tribunais, que em vez do fuzilamento dos concussionários, os condenam a meio ano de prisão. Ambos estes nossos defeitos têm a mesma raiz social: a influência do elemento pequeno-burguês, a sua frouxidão (LENIN, 1980: 606).[3]

A essa altura Lênin referia-se somente a repressão promovida contra os capitalistas que fugiram as medidas de capitalismo de Estado do Poder Soviético e ainda reivindicava a “combinação dos meios de repressão implacável contra os capitalistas incultos (...) com os meios do compromisso com os capitalistas cultos” (LENIN, obra citada: 606)[4]. Entendendo-se capitalistas cultos aqueles que aceitavam sem resistências as medidas do Estado. Porém a situação da guerra civil mudaria esse quadro de relativa frouxidão das medidas de repressão.

            É bem conhecido o fato de que após o inicio da guerra civil russa e da intervenção militar estrangeira os bolcheviques proíbem o comércio privado dos cereais, instituindo um sistema de cotização do trigo produzido pelos camponeses e de distribuição de rações aos operários. Um dos pilares dessa politica de comunismo de guerra é a violenta repressão a todo comércio privado de cereais, entendido como uma prática capitalista e pequeno-burguesa.

            A forma como os comunistas devem desenvolver a repressão à classe capitalista nos períodos de guerra e de perigo ao Poder Soviético já é indicada por Lênin meses antes em decreto publicado no nº 32 do Pravda, em 22 de Fevereiro de 1918, intitulado, A Pátria Socialista Está em Perigo, onde afirma:

Os operários e camponeses de Petrogrado, Kíev e de todas as cidades, lugares, povoações e aldeias ao longo da linha da nova frente devem mobilizar batalhões para cavar trincheiras sob a direcção de especialistas militares. Nestes batalhões devem ser incluídos todos os membros da classe burguesa aptos para o trabalho, homens e mulheres, sob a vigilância dos guardas vermelhos; fuzilar os que resistam (LENIN, 1980: 479).[5]

Ora, é a situação de pátria em perigo que vai predominar durante todos os anos da guerra civil. E mesmo posteriormente mantem-se conflitos armados entre os soviéticos e os japoneses na cidade de Vladvostoki e mesmo distúrbios militares internos como a sublevação de Kornstrandt. A crise de fome de 1921-1922 é também um elemento de enorme instabilidade política e social.

            Não pretendemos aqui condenar os bolcheviques, muito menos atribuir uma culpabilidade pessoal a Lênin pela crueldade repressora dos primeiros anos do regime soviético. Estamos em total acordo com Cerdeira sobre a necessidade de tais políticas autoritárias para defender o regime soviético e a revolução socialista do terror e do autoritarismo Branco, que é por si muito mais cruel e tem por alvo exclusivo a classe trabalhadora e por objetivo a defesa dos interesses dos patrões capitalistas.

            A questão é que a situação particular da guerra civil russa combinada com a intervenção estrangeira, e até a crise posterior inflaciona o alcance das medidas repressivas até que elas recaem sobre a classe operária. Nesse ponto a proibição do comércio privado de cereais é sintomática. Dados fornecidos pelo próprio Lênin indicam isso. Num artigo publicado no nº 250 do Pravda, em 7 de Novembro de 1919, ele nos fornece dados sobre o aprovisionamento de viveres agrícolas nas regiões urbanas. Dos 714,7 milhões de puds de cereais a disposição da população soviética somente 53 milhões é fornecido pelo Estado, enquanto 63,4 milhões é fornecido pelos traficantes (LENIN, 1980: 205)[6]. Ora, sendo uma medida que assegura o abastecimento de viveres alimentícios ao Exército Vermelho e, portanto, ajuda a classe operária e os camponeses a livra-se da restauração e do terror Brancos a política bolchevique de cereais também reprime pelo terror um setor da economia que é responsável pela maior parte do consumo das massas urbanas e tem inevitavelmente de impor nesse processo o terror sobre essa população, ainda que de forma não planejada. Acontece que a população operária e camponesa apoiava os bolcheviques contra as tropas brancas nas quais via a restauração do terror dos latifundiários e capitalistas, mas também sentiam os limites da política de abastecimento dos bolcheviques e precisava buscar por todos os meios esses viveres, inclusive burlando as leis do Estado socialista.

            Sem falar nas enormes privações do período de guerra que leva a morte por inanição ou pelo frio de uma parte considerável da população operária dos centros industriais e urbanos, enquanto outra é forçada a retornar as regiões rurais em busca de refugio material. O que inviabilizava na prática a democracia operária dos sovietes e mantinha-as, como já afirmei, como potencialidades. Sem falar da supressão efetiva dos Comitês de Fábrica em favor da responsabilidade unipessoal[7]. Esse é um ponto falho do trecho citado do texto de Cerdeira e um exemplo da sua incapacidade de perceber o caráter potencial e não efetivo, da democracia no período de Lênin. Os Comitês de Fábrica efetivamente deixaram de funcionar em favor do sistema de diretor único indicado pelo poder central, e em contrapartida, Cerdeira inclui-os entre as organizações que asseguravam a democracia operária daquele período.

            Os méritos de Lênin não são a realização plena da liberdade e da democracia operária e sim a realização e defesa da revolução socialista. Defesa que se fez através da instauração de uma ditadura enérgica, que por vezes tolhia direitos dos trabalhadores, mas que foi extremamente necessária devida as circunstâncias extraordinárias.

            Dessa forma, se se tem em vista esse quadro do período anterior ao período de Stálin, obviamente que Stálin representa não uma deriva burocrática e totalitária no poder soviético. Para já não falar das enormes limitações do conceito de regime totalitário, o período de Stálin é na verdade o de realização efetiva das potencialidades democráticas do regime soviético. Ao desenvolver a economia socialista, ao livrar milhões de seres humanos da morte pela fome, ao realizar o pleno emprego, ao livra a URSS e o mundo da ameaça nazifascista, ao aprimorar o ordenamento constitucional do regime soviético.

            É claro que essa discussão é muito mais enviesada e problemática do que parece. Mas o que argumento aqui é que a construção da teoria de uma ruptura entre bolchevismo e stalinismo se apoia, e muito, na idealização do período de Lênin. Numa mitologia do período de Lênin.

A hipocrisia do argumento de Trotsky sobre o massacre da velha guarda bolchevique

Outro elemento que me chamou atenção no texto é a utilização do argumento de Trotsky, segundo o qual, o stalinismo não poderia ser considerado um filho do bolchevismo, porque:

Depois da purga, a divisória entre o stalinismo e o bolchevismo não é uma linha sangrenta, mas sim toda uma torrente de sangue. A aniquilação de toda a velha geração bolchevique, de um setor importante da geração intermediária, a que participou na guerra civil, e do setor da juventude que assumiu seriamente as tradições bolcheviques, demonstra que entre o bolchevismo e o stalinismo existe uma incompatibilidade que não é só política, mas também diretamente física.[8]

Depois desse raciocínio só restaria, segundo Trotsky, a pergunta “se o stalinismo é herdeiro do bolchevismo porque teve necessidade de aniquilar fisicamente toda a velha guarda bolchevique para consolidar seu poder?” Mas parece que a situação é mais complicada do que ele pretende, afinal era ele mesmo quem pouco antes havia denunciado que a velha guarda bolchevique afastava-se da revolução e se tornava um grupo apodrecido de burocratas. E pouco antes de ser banido do país reivindicava que a juventude se rebelasse contra a burocracia reinante no Kremlin. Não é estanho que mais tarde, quando essa velha geração de burocratas degenerados é banida por Stálin, Trotsky volte a ver nela o elo com o velho bolchevismo liquidado pelo stalinismo?

O mito do caráter circunstancial da reivindicação de “estatização dos sindicatos e da militarização do trabalho” em Trotsky

A afirmação de que a reivindicação de estatização dos sindicatos e da militarização do trabalho, em Trotsky, tem caráter circunstancial é outro ponto que me chamou atenção no texto. Para Cerdeira esse teria sido um “erro” de Trotsky. Acredito que não. Esse não foi um erro de Trotsky, mas sim algo que estava vinculado a sua própria interpretação do marxismo[9]. Vejamos o que Trotsky afirma sobre isso. No IX Congresso do Partido Comunista da Rússia, em Março de 1920, no relatório em que traça seu projeto ele busca também justifica-lo teoricamente:

“Antes de desaparecer, a coerção estatal atingirá, durante o período de transição, o seu mais alto grau de intensidade na organização do trabalho.”

Quem está familiarizado com o Marxismo sabe muito bem que “período de transição” significa socialismo. Período de transição entre capitalismo e comunismo. Para Trotsky, o socialismo é sinônimo de coerção estatal em seu mais alto grau de intensidade sobre a classe trabalhadora. O que está de em total concordância com a interpretação economicista que Trotsky faz do marxismo.

Outro elemento interessante se encontra nessa passagem do mesmo relatório:

A militarização é impossível sem a militarização dos sindicatos como tais, sem o estabelecimento de um regime no qual cada trabalhador se considere um soldado do trabalho que não pode dispor livremente de si mesmo; se ele recebe uma ordem de transferência, deve executá-la; se não a executa, será um desertor que deve ser punido. Quem cuida disso? O sindicato. Ele cria o novo regime. É a militarização da classe operária (TROTSKY apud BETTELHEIM, 1979: 351).[10]

Para Trotsky o sindicato, mais precisamente, o sindicato militarizado, cria o novo regime, o socialismo. Isso não é só uma proposta burocrática de socialismo, mas também, combina-se ao desvio para o sindicalismo.

            A posição de Trotsky quanto a militarização do trabalho e dos sindicatos não é de maneira nenhuma um erro, mas parte fundamental de seu pensamento. É claro que mais tarde, quando já estava banido, Trotsky lança seus berros contra o regime de trabalho instituído por Stálin na URSS. Mas isso só é prova de que a politica que desenvolve é hipócrita. Quando dispondo do poder, o ex-comissário elaborou uma proposta de organização do trabalho que se baseava, não só na aniquilação de toda autonomia dos trabalhadores no processo de produção, mas também aniquilação de suas garantias civis o transformando num “soldado do trabalho que não pode dispor livremente de si mesmo”.

Lênin e o Problema do Socialismo em um só país

Outra questão muito delicada no texto é a tentativa de assimilação entre trotskismo e leninismo sob o signo do bolchevismo que se opõe ao stalinismo burocrático. Segundo Cerdeira:

O primeiro a lutar contra a burocratização foi o próprio Lenin. Foi seu último combate, só interrompido por sua morte em 1924. A bandeira da luta contra a burocracia foi arrebatada pela Oposição de Esquerda, dirigida por Trotsky que a sintetizou em forma de programa político de transição na luta pela Revolução Política, uma das bases para a fundação da Quarta Internacional.[11]

A luta de Lênin contra a burocracia merece ser tratado com muita seriedade. Merece um artigo inteiro para estuda-lo. Quanto à luta de Trotsky, o exemplo dos sindicatos é bem significativo do valor dessa luta.

            Mas outra forma de assimilação entre as duas teorias que merece mais atenção é a afirmação de que nem Lênin nem Trotsky “pensaram que seria desejável ou mesmo possível qualquer tipo de desenvolvimento “socialista” num só país.”[12] O que não é verdade. Para confirmar essa tese Cerdeira só fornece uma citação de Lênin que vai retirar do livro de Trotsky que é, portanto, pouco fiável e nem se quer serve como prova de que Lênin não pensava em um desenvolvimento socialista em um só país; “Tendo conquistado o poder, o proletariado russo tinha inteira chance de mantê-lo e impulsionar a Rússia através da vitoriosa revolução no Ocidente.”[13] Essa citação só serve para comprovar que Lênin acreditava que a vitória da revolução no Ocidente poderia impulsionar a Rússia proletária na edificação do socialismo, não que ela era seu pressuposto. Por outro lado, Lênin fala abertamente do socialismo em um só país nesses termos já em 23 de Agosto de 1915, portanto, antes mesmo da Revolução de Outubro:

A desigualdade do desenvolvimento económico e político é uma lei absoluta do capitalismo. Daí decorre que é possível a vitória do socialismo primeiramente em poucos países ou mesmo num só país capitalista tomado por separado.

E traça o programa da revolução socialista vitoriosa em um só país:

O proletariado vitorioso deste país, depois de expropriar os capitalistas e de organizar a produção socialista no seu país, erguer-se-ia contra o resto do mundo, capitalista, atraindo para o seu lado as classes oprimidas dos outros países, levantando neles a insurreição contra os capitalistas, empregando, em caso de necessidade, mesmo a força das armas contra as classes exploradoras e os seus Estados (LENIN, 1979: 571)[14].

Assim a primeira tarefa do novo Estado Operário isolado é a de “expropriar os capitalistas e de organizar a produção socialista no seu país”. Lênin aparece aqui como o pai da teoria do socialismo em um só país, e até onde se queira da coexistência pacífica, já que a passagem para o conflito direto com o mundo capitalista pressuponho um largo tempo no qual será possível organizar a produção socialista. O pensamento de Lênin estaria muito mais identificado com o que se costuma chamar de Stalinismo do que com o Trotskismo. Já que a posição que Trotsky – em plena maturidade política – expõe; é:

Foi precisamente durante o intervalo transcorrido entre 9 de janeiro e a greve de outubro de 1905 que esses pontos de vista – posteriormente conhecidos como teoria da "revolução permanente "– amadureceram na mente do autor. Esta expressão um tanto presunçosa, revolução permanente, pretende indicar que a revolução russa, embora diretamente relacionada com propósitos burgueses, não podia deter-se em tais objetivos: a revolução não resolveria suas tarefas burguesas imediatas sem o acesso do proletariado ao poder. E o proletariado, uma vez que tivesse o poder em suas mãos, não poderia permanecer confinado dentro do modelo burguês da revolução. Pelo contrário, precisamente como objetivo de garantir sua vitória, a vanguarda proletária – nos primeiros estágios de seu governo – teria que fazer incursões extremamente profundas não apenas nas relações da propriedade feudal, como também nas de propriedade burguesa. Ao fazer isso não apenas entraria em conflito com todos aqueles grupos burgueses que a tinham apoiado durante as primeiras etapas da luta revolucionária, mas também com as grandes massas do campesinato, cuja colaboração teria levado o proletariado ao poder.

As contradições entre um governo dos trabalhadores e uma esmagadora maioria de camponeses num país atrasado só poderiam ser resolvidas em escala internacional, nos limites de uma revolução proletária mundial.

A data é 12 de Janeiro de 1922 e Trotsky afirma:

Apesar dos doze anos transcorridos, essa análise foi completamente confirmada.[15]

O que tem tudo isso a ver com o Leninismo. Acaso Lênin teria abandonado suas posições iniciais em favor das posições de Trotsky. Vejamos o que diz o líder da revolução, em um dos seus últimos escritos:

Todos os grandes meios de produção em poder do Estado e o Poder estatal nas mãos do proletariado; a aliança deste proletariado com os muitos milhões de camponeses e muito pequenos camponeses; a garantia de que o proletariado dirija os camponeses, etc. Acaso não é tudo isso necessário para que, com a cooperação e apenas com a cooperação, que antes designamos como mercantilista e que agora, sob a orientação da NEP, merece também de certo modo a mesma designação, acaso não é tudo isso necessário para construir a sociedade socialista completa? Não é ainda a construção da sociedade socialista, mas realmente é tudo necessário e suficiente para esta construção – o grifo é nosso. (Lênin, 1980B: 657-658).[16]

Pois bem, a data é 6 de Janeiro de 1923, e Lênin fala que a Rússia da NEP dispõe de tudo que é suficiente para a construção do socialismo. Fala de aliança entre os proletários e os milhões de camponeses e muito pequenos camponeses. Enquanto Trotsky fala de impossibilidade de resolução dos problemas da revolução russa na arena nacional. Fala de coalisões hostis entre o Estado dos operários e a massa camponesa atrasa. Fala de “contradições entre um governo dos trabalhadores e uma esmagadora maioria de camponeses” só solucionáveis na arena internacional. São dois pensamentos diametralmente opostos. Outro exemplo disto está no próprio texto. Cerdeira cita essa passagem que é característica do pessimismo politico de Trotsky:

Se o povo europeu não se insurgir e derrotar o imperialismo, nós deveremos ser esmagados, isto é indubitável. Ou a Revolução Russa consegue fazer eclodir a luta no Ocidente, ou então os capitalistas do mundo inteiro sufocarão a nossa revolução.[17]

Essas são algumas das minhas considerações sobre o texto “Bolchevismo e Stalinismo; um velho debate”.

Conclusão

Sem se ater aos dados empíricos da história da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas disponíveis os trotskistas vêm, baseando-se nos escritos de Trotsky sobre a Revolução Russa e seu desenlace, escritos que são extremamente lisonjeiros para si mesmo, contribuindo para fortalecer mitos sobre o que se passou na URSS dos anos 1930. Mitos que tem servido para fortalecer a leitura feita pelos Estados ocidentais do período da guerra fria, onde Stálin é sempre visto como o propulsor de uma ruptura com o marxismo revolucionário (bolchevismo) do período de Lênin. Se faz necessário contrapor a essa leitura uma que se atenha melhor aos dados históricos e possa assim questionar o pensamento único vigente nas leituras históricas.



[1] Bernado Cirdeira; Bolchevismo e Stalinismo um velho debate <<http://revistaoutubro.com.br/blog/edicoes-anteriores/revista-outubro-n-3/>>, consultado em 25 de Outubro de 2012.
[2]  Obra citada
[3] Vladimir Lênin, Acerca do Infantilismo “de Esquerda” e o Espirito Pequeno-Burguês, páginas 592-613 (citação na nota de rodapé da página 606) in V.I. LENIN OBRAS ESCOLHIDAS EM TRÊS TOMOS; V. 2. – São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1980. Também disponível em <<http://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/05/05.htm>>.
[4] Vladimir Lênin, Acerca do Infantilismo “de Esquerda” e o Espirito Pequeno-Burguês, páginas 592-613 in V.I. LENIN OBRAS ESCOLHIDAS EM TRÊS TOMOS; V. 2. – São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1980. Também disponível em <<http://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/05/05.htm>>.
[5] Vladimir Lênin, A Pátria Socialista Está em Perigo, páginas 479-480 in V.I. LENIN OBRAS ESCOLHIDAS EM TRÊS TOMOS; V. 2. – São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1980. Também disponível em << http://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/02/22.htm>>.
[6] Vladimir Lênin, A Economia e a Política na Época da Ditadura do Proletariado, páginas 202-209 in V.I. LENIN OBRAS ESCOLHIDAS EM TRÊS TOMOS; V. 3. – São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1980. Também disponível em <<http://www.marxists.org/portugues/lenin/1919/10/30.htm>>.
[7] Charles Bettelheim, Luta de Classes na União Soviética: Primeiro Período: (1917-1923), A; – 2ª Edição – a tradução de Bolívar Costa, revisão técnica de Sérgio Silva. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Páginas 141-145.
[8] Trotsky apud Cerdeira, Bernado Cirdeiro; Bolchevismo e Stalinismo um velho debate <<http://revistaoutubro.com.br/blog/edicoes-anteriores/revista-outubro-n-3/>>, consultado em 25 de Outubro de 2012.
[9] Na entrevista ao Jornal da Verdade de 21 de Setembro de 2011 o historiador Grove Furr define assim o marxismo de Trotsky “um tipo de determinismo econômico extremado – predizia que a revolução estava fadada ao fracasso a não ser que fosse seguida por outras revoluções nos países industrialmente avançados.” << http://averdade.org.br/2011/09/acusacoes-de-kruschev-contra-stalin-sao-falsas/>> Consultado em 25 de Outubro de 2012.
[10] Charles Bettelheim, Luta de Classes na União Soviética: Primeiro Período: (1917-1923), A; – 2ª Edição – a tradução de Bolívar Costa, revisão técnica de Sérgio Silva. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
[11] Bernado Cirdeira; Bolchevismo e Stalinismo um velho debate <<http://revistaoutubro.com.br/blog/edicoes-anteriores/revista-outubro-n-3/>>, consultado em 25 de Outubro de 2012.
[12] Obra citada
[13] Obra citada
[14] Vladimir Lênin, Sobre a Palavra de Ordem dos Estados Unidos da Europa, in V.I. LENIN OBRAS ESCOLHIDAS EM TRÊS TOMOS; V. 1. – São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1979. Páginas 569-572. Também disponível em << http://www.marxists.org/portugues/lenin/1915/08/23.htm>> Consultado em 25 de Outubro de 2012.
[15] Leon Trotsky , prefácio à edição de 1922 do livro A Revolução de 1905, <http://www.marxists.org/portugues/trotsky/1907/rev_1905/prefacio.htm, consultado pela última vez em 29 de junho de 2012.> consultado em 25 de Outubro de 2012.
[16] Vladimir Lênin, Sobre a Cooperação, in V.I. LENIN OBRAS ESCOLHIDAS EM TRÊS TOMOS; V. 3. – São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1980. Páginas 657-662.
[17]  Trotsky apud Bernado Cirdeiro; Bolchevismo e Stalinismo um velho debate <<http://revistaoutubro.com.br/blog/edicoes-anteriores/revista-outubro-n-3/>>, consultado em 25 de Outubro de 2012.